quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Lembrança no Dia do Professor

O que trago comigo são lembranças de um grande avô. Sério, porém carinhoso, frequentemente mergulhado nos livros de seu escritório, mas sempre pronto para acolher a netinha curiosa. Porém, mais do que isso, Isaac Nicolau Salum foi um grande professor. Segue o relato de uma de suas alunas, gentilmente cedido para este blog. Feliz Dia dos Professores!

Abraço,

Taís Salum



Acervo FFCL - USP
O professor Antonio Candido escrevendo sobre seu “primo Salum” comenta: “Os amigos gostariam que fosse menos enrolado e um pouco mais afoito, para publicar o que elabora lentamente e guarda na gaveta ou arredores”.
E aqui estamos nós, abrindo “gavetas e arredores”, mergulhando na riqueza do escritório particular do professor Isaac Nicolau Salum, catedrático de Filologia Românica da Universidade de São Paulo, nascido em 1913 no pequeno município mineiro de Ventania. O que poderia, entretanto, passar a impressão de invasão apresenta-se como partilha: penetrar em seu escritório é repetir o encontro com o professor, sempre pronto a receber quem quer que fosse (velhos amigos, pesquisadores de renome, estudantes escrevendo teses, calouros dos cursos de Letras, pessoas desesperadas em busca de apoio), ouvi-los com sabedoria e colmá-los de erudição.
Erudição, nesse caso, é o conhecimento vasto adquirido desde seus tempos de estudante no Ginásio de Muzambinho − ou até mesmo desde que, criança, ajudante numa alfaiataria, manifestou interesse pelas línguas irmãs ao elaborar uma tabela de correspondência entre a “língua desconhecida” de um manual de corte e costura abandonado num canto pelo mestre alfaiate (a língua castelhana...) e a língua portuguesa − na fusão perfeita com seu jeito simples, seu jeito de caboclo.
Eram essas suas características de um homem, a um tempo exigente e caloroso, rigoroso e bem-humorado, que faziam de suas aulas de Filologia Românica na USP a delícia de seus alunos. Quem, aos dezoito, dezenove anos de idade, não gostava de saber que o dalmático foi sendo “empurrado” para o mar pelo eslavo e que sua última falante, de nome Udina, morreu em 1898 e com ela uma das nove línguas latinas? Quem não se interessava em saber que “negócio” é a negação do ócio? E quem não gostava, como ilustração do trabalho de reconstituição do latim vulgar, de tentar decifrar um texto em romeno? Lembro-me ainda do título: “Magazinul de încaltaminte”, ou seja, “A loja de calçados”, do qual se deduzia que o artigo é ul e vem acoplado ao nome, no final deste.
E a quem não interessava aprender que a palavra lenha provém do latim vulgar ligna (neutro plural), atestando de um lado o desaparecimento do neutro por sua semelhança com o feminino e, de outro, a permanência do plural embutida na ideia de coletivo da palavra em português?
E o grau dos substantivos, que se perdeu na história da formação de nossa língua, fazendo com que oricla não se transformasse em orelhinha mas em orelha e ovicla se transformasse em ovelha e não em ovelhinha?
E saber que o superlativo sintético, usadíssimo hoje, não aparece nunca na Carta de Pero Vaz de Caminha pois é influência posterior, do italiano erudito?
E a conjunção ac do latim vulgar, da qual só temos vestígio no português falado em Portugal e na fala do caboclo, como em “dezassete”= dez ac sete?
Mas isto são memórias e a memória parece sempre escolher o pitoresco, o factual, talvez por saber não ser capaz de retratar o que foi o professor. O cerne do que ele transmitiu deve ser procurado nas teses que orientou e nas quais cuidadosamente fez anotações, nas obras que traduziu, nos prefácios que escreveu (destacando-se o que fez à edição brasileira do Curso de Linguística Geral de Saussure, nos artigos sobre filologia, gramática e linguística, em sua assídua colaboração a jornais religiosos, nas suas conferências, no seu incentivo a entidades de pesquisa (sobretudo ao Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo e à Associação Brasileira de Linguística), a grupos de trabalho de porte como o Projeto de Estudo da Norma Urbana Culta).
Um destaque ao Salum religioso, bacharel em Teologia pela Faculdade da Igreja Presbiteriana Independente, um dos fundadores da Igreja Cristã de São Paulo, colaborador do “Cristianismo”, órgão de renovação religiosa em busca do ecumenismo. Seus artigos e suas conferências são um misto de erudição e apostolado, reproduzindo sua incrível capacidade de trabalho e variedade de interesses.
Anotações eruditas em pequenos papéis de rascunho, com letra impecável e uniforme, hinos religiosos copiados em papel de seda, cadernos com levantamentos exaustivos sobre termos usados nas diversas edições da Bíblia, mapas dos povos celtas, exercícios para os alunos, traduções de salmos, gráficos de análise sintático-semântica de textos, até mesmo brincadeiras com sons, na elaboração de lindos poemas sem sentido...− tudo a revelar e a encobrir o conhecimento do filólogo: eis aí o mundo do acervo Isaac Nicolau Salum.

Maria Augusta Bastos de Mattos
[Por ocasião da 1ª exposição do acervo INS no CEDAE - IEL -UNICAMP]

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