sábado, 15 de novembro de 2014

Festa de aniversário – Crônica de Fernando Sabino


Leonora chegou-se para mim, a carinha mais limpa desse mundo:
Engoli uma tampa de Coca-Cola.
Levantei as mãos para o céu: mais essa agora! Era uma festa de aniversário, o aniversário dela própria, que completava seis anos de idade. Convoquei imediatamente a família:
Disse que engoliu uma tampa de Coca-Cola.
A mãe, os tios, os avós, todos a cercavam, nervosos e inquietos. Abre a boca minha filha. Agora não adianta: já engoliu. Deve ter arranhado. Mas engoliu como? Quem é que engole uma tampa de cerveja? De cerveja, não: de Coca-Cola. Pode ter ficado na garganta – urgia que tomássemos uma providência, não ficássemos ali, feito idiotas. Peguei-a no colo: vem cá minha filhinha, conta só pra mim: você engoliu coisa nenhuma, não é isso mesmo? – Engoli sim papai! – Ela afirmava com decisão. Consultei o tio, baixinho: o que é que você acha? Ele foi buscar uma tampa de garrafa, separou a cortiça do metal:
O que é que você engoliu: isto... Ou isto?
Cuidado que ela engole outra. – Adverti.
Isto! – E ela apontou com firmeza a parte de metal.
Não tinha dúvida: pronto-socorro. Dispus-me a carregá-la, mas alguém sugeriu que era melhor que ela fosse andando: auxiliava a digestão.
No hospital, o médico limitou-se a apalpar-lhe a barriguinha, cético:
Dói aqui, minha filha?
Quando falamos em radiografia, revelou-nos que o aparelho estava com defeito: só no pronto-socorro da cidade.
Batemos para o pronto-socorro da cidade. Outro médico nos atendeu com solicitude:
Vamos já ver isto.
Tirada a chapa, ficamos aguardando ansiosa revelação. Em pouco o médico regressava:
Engoliu foi a garrafa.
A garrafa? – Exclamei. Mas, era uma gracinha dele, cujo espírito passava muito ao largo da minha aflição: eu não estava para graças. Uma tampa de garrafa! Certamente precisaria operar – não haveria de sair por si mesma.
O médico pôs-se a rir de mim:
Não engoliu coisa nenhuma. O senhor pode ir descansado.
Engoli! – afirmou a menininha.
Voltei-me para ela:
Como é que você ainda insiste minha filha?
Que eu engoli, engoli.
Pensa que engoliu. – emendei.
Isso acontece. – sorriu o médico: - Até com gente grande. Aqui já teve um guarda que pensou ter engolido o apito.
Pois eu engoli mesmo – comentou ela, intransigente.
Você não pode ter engolido – arrematei já impaciente: - Quer saber mais do que o médico?
Quero. Eu engoli, e depois desengoli! – Esclareceu ela.
Nada mais havendo a fazer, engoli em seco, despedi-me do médico e bati em retirada com toda a comitiva.

SABINO, Fernando. A vitória da infância. São Paulo: Editora Nacional, 1984.

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